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O fim do mundo é o fracasso: fracasso das formas políticas, sociais, culturais e subjetivas que conhecemos e dos modos de vida que delas são efeitos. Novas formas necessitam ganhar contornos. Sobre as possibilidades de criação, em coletivo, dessas novas formas elaboramos nossa proposta para a Residência do Fim do mundo. Afastamo-nos de autofalantes e aproximamo-nos dos grilos.

A cartografia poética de um gesto, o de conversar infinito, é a proposta da publicação. Cartografar: "para os geógrafos a cartografia – é diferente do mapa: representação de um todo estático – é um desenho que acompanha e se faz ao mesmo tempo que os movimentos de transformação da paisagem. Paisagens psicossociais também são cartografáveis. A cartografia, nesse caso, acompanha e se faz ao mesmo tempo que o desmanchamento de certos mundos – sua perda de sentido – e a formação de outros: mundos que se criam para expressar afetos contemporâneos, em relação aos quais os universos tornaram-se obsoletos”. Cartografar esse gesto é elaborá-lo sem, contudo, esgotar suas possibilidades de re-criação sem fim. Um gesto em aberto para o qual procuramos encontrar uma forma visual.

As coordenadas iniciais indicam os primeiros momentos desse conversar infinito e levam ao tempo-espaço produzido durante a Residência de Artes Visuais do Festival de Arte da Serrinha, na cidade de Bragança Paulista, durante o mês de julho de 2016. Vivendo em São Paulo, próximos uns aos outros, não havíamos nos encontrado. Foi necessário viajar, movimentar-nos. “Viajar! Perder países!”, diz Fernando Pessoa. É “por alma não ter raízes” (1933). Viajar é perder cidades, corroer identidades, é uma abertura para outras possibilidades de existência.

Somos três corpos específicos: Tatiana Kahvegian, Domingos Octaviano e Gabriela De Laurentiis. Entretanto, não se enganem! Aqui, não tratamos de pessoalidades ou de afirmações de identidades. São as formulações estético-políticas que compõem o espaço contemporâneo e preocupam-se com as práticas de liberdade, que nos interessam.
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Criar imagens que permitam imaginar outras formas para a existência. “A imagem é um enigma, desde o momento em que, por nossa leitura indiscreta, fazemo-la surgir para pô-la em evidência arrancando-a do segredo de sua medida. (...) ela é essencialmente dupla, não apenas signo e significado, mas figura do não figurável, forma do informal, simplicidade ambígua que se dirige àquilo que há de duplo em nós e reanima a duplicidade em que nós nos dividimos, em que nós nos juntamos indefinidamente”.

As imagens são um duplo de nosso conversar e são atravessadas pelas preocupações com os crescentes autoritarismos vivenciados em nosso país, em nossa cidade. Impedimentos, grandes eventos esportivos, a violência policial, repressões, cerceamentos, bancada evangélica, partidos políticos, congresso nacional, manifestações, são todas questões que nos preocupam e nos animam. Preocupam-nos, ainda, a grande enxurrada de imagens às quais somos expostos a todo tempo. Redes sociais, coberturas ao vivo, revistas e jornais impressos e digitais de distintas as correntes políticas procuram afirmar suas verdades por meio do aparato audiovisual. Na disputa pela verdade, pelo governo, as imagens simplistas ganham corpo e reduzem as possibilidades para imaginação de outros mundos: não estancados em binarismos. Os desenhos em linhas abstratas para tratarmos do cenário político atual delineiam o nosso gesto e nossa conversa infinita, na procura de uma crítica radicalmente política aos fascismos e aos autoritarismos. Uma cartografia que se constrói a partir de três blocos: incêndios; diluições; seres da noite.

Incêndios: Traz o fogo como imagem principal. Foi com a mata pegando fogo que se iniciaram nossos dias na Serrinha. O fogo que simultaneamente destrói e constrói. Aquilo que se cria como imagem da paixão, do que faz vibrar o corpo. Nosso fogo é vermelho – cor envolta em polêmicas, nesses estranhos dias em que vivemos. Nosso fogo é black – cor ainda mais conflituosa, envolta em táticas de luta nas ruas das cidades. Nosso fogo faz lembrar a menina que dança de João Cabral de Melo Neto e, então, sua imagem é em certa medida desmentida. Uma dança se cria, pois afinal “se não posso dançar, não é minha revolução”, como nos alerta Emma Goldman (1869-1940).
⁠⁠⁠Ponho-me às vezes a cismar como seria belo o fim do mundo,
Antes de Cristo…

Nos campos verdes
Decorativas ossadas
Brancas geometrias.

Na cidade morta
Colunas. O azul, imóvel, sonha
A última asa.

A folha,
Graça infinita,
Se desprende e tomba

No tanque: leve sorriso da água…

Porém, quando este mundo cibernético for para o
Diabo que o forjicou
E todas as nossas bugigangas eletrônicas virarem
sucata
E todos as estrelas perderem os seus nomes,

Os únicos poetas que os sobreviventes entenderão
São os que hoje ainda falam no cricilar dos grilos,
no frêmito

Do primeiro
Amor…
Redescobridores encantados da poesia
Esses pobres homens não serão nem ao menos
arqueólogos

E nós descansaremos, finalmente, em paz.
Fim do Mundo,
Mário Quintana
Diluições: Traz a água como imagem. Diluir a tinta como técnica, diluir as formas fixas como movimento primeiro. Elemento de purificação, muitas vezes associado às religiosidades, aqui é profano. Água misturada aos pigmentos ganha cores. Essas cores nos interessam. Territórios são produzidos com a água e remetem aos escritos de Gilles Deleuze. E sua constituição é precisamente a elaboração da prática artística. Diluir fronteiras, diluir binarismos, diluir os micro-fascismos que se exacerbam em nossa política e que em nome do sagrado querem controlar as nossas trocas de fluídos.

Seres da noite: Traz o invisível como imagem principal e faz pensar no vento da madrugada de Mario Quintana. O vento que produz movimentos tempestuosos e brisas de frescor. Destrói e produz prazer. As afeições que se constroem, as paixões que se agitam e se contrapõem aos ódios tão em voga. O movimento é por vezes violento – uma violência de criação, contra toda reação (reacionarismos) que nos circulam.

ROLNIK, Suely. Cartografia Sentimental, Transformações Contemporâneas do Desejo. São Paulo: Ed. Sulinas, 2006. p. 23.

PESSOA, Fernando. Poesias Fernando Pessoa. (Nota explicativa de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1942 (15ª ed. 1995). - 182.

BLANCHOT, Maurice. A conversa infinita 3: a ausência de livro. São Paulo: Escuta, 2010.

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O movimento trazido pela viagem permitiu estabelecer os primeiros blocos do conversar infinito. Os novos passos ocorrem em novas coordenadas, na cidade de São Paulo. Mais especificamente, na R. Cap. Salomão, 26 - terceiro andar, Centro de São Paulo. Nesse novo espaço-tempo as conversações permitirão elaborar o corpo de nosso gesto, em imersão propiciada pela residência. Serão fundamentais as trocas com Elaine Ramos, Aline Valli, Bia Bittencourt, Rosângela Rennó e Marcius Galan e as parcerias com Ipsis Gráfica e Editora, Meli-Melo Press e Arjo Wiggins. O primeiro formato da publicação (ainda incompleto) está, portanto, sujeito às transformações.

Formato: 19 x 28 cm
Papel: Variados 1x1 cor
Tiragem: 500 exemplares
Orçamento: 12.000 reais
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